11/08/2023
por Letícia Chimini
“Prefiro morrer na luta do que morrer de fome”
(Margarida Alves; Roseli Nunes)
As camponesas são defensoras dos direitos humanos e no Brasil desenraizaram direitos para a totalidade da classe trabalhadora. Nas raízes da formação sócio-histórica do Brasil, o campesinato planta resistência, colhe direitos, mas também as várias formas de violências plantadas pelo Estado aliado ao capital.
Alguns nomes são conhecidos e foram visibilizados pela história, outros tantos apagados. O nome das mulheres tem reconhecimento quando uma tomba lutando. Margarida Maria Alves foi dessas mulheres, cuja luta pelos direitos trabalhistas e pela reforma agrária se fundiu com a própria vida. Sua atuação se tornou alvo de ameaças e perseguições por parte de proprietários de terras e grupos poderosos contrários à luta coletiva que fazia. Ela foi assassinada em 12 de agosto de 1983, em frente à sua casa por pistoleiros contratados.
Roseli Nunes também foi uma lutadora pela reforma agrária e também foi assassinada. Sua vida foi ceifada durante um protesto de pequenos agricultores no Norte do RS. Margarida e Roseli tinham muitas coisas em comum, haja vista que a luta por terra, pelo território, por justiça e direitos anda pari passu na luta contra a fome.
Nessa data, conclamamos a categoria à refletir sobre o combate à fome, a partir de elementos que comungam a questão social e a questão agrária e que, por fim, mobilizam para reflexões que recaem sobre a luta por terra e território (recursos naturais) e, consequentemente, para darmos visibilidade às formas violentas e desigualdades estruturais que decorrem dos conflitos na luta de classes.
Essas, nos remetem para a formação de um país que assentou suas estruturas na exploração, expropriação e que transitou da democracia dos oligarcas à “democracia do grande capital” sem uma desagregação radical da herança colonial que conformou a estrutura agrária brasileira. (IAMAMOTO, 2015). Dessa herança permanecem, tanto a subordinação da produção agrícola aos interesses exportadores, quanto os componentes não capitalistas nas relações de produção e nas formas de propriedade, que são redimensionadas e incorporadas à expansão capitalista, territorializando o capital e monopolizando a terra.
A terra é elemento central, pois os países de economia periférica inserem-se de forma subordinada na divisão internacional do trabalho, como países produtores e exportadores de matérias primas, do setor primário, com profunda extração de recursos naturais. O setor primário e os recursos naturais têm na terra sua fonte de recursos, é a partir dela que se inicia a exploração interna e internacional pelo capital, que avança sobre a totalidade da classe trabalhadora. Esse processo manteve e aprofundou os laços de dependência em relação aos países centrais. Nos moldes do sistema capitalista neoliberal acirrou nos territórios rural e urbano a chancela das desigualdades sociais em todo o território.Ao inserir-se de forma subordinada no capitalismo internacional, coloca o destino de seu povo para ser determinado por interesses externos e internos (burguesia nacional), que remetem à intensificação da superexploração.
A questão social passa a ser composta, também, pelas desigualdades que são conformadas sócio-historicamente, política e economicamente que no Brasil se reflete até os dias de hoje, na forma violenta como esse país foi invadido, saqueado, expropriado, com profundas desigualdades no acesso à terra, no genocídio dos povos originários, na escravização do povo negro, na qual o capitalismo desenvolveu particularidades de um capitalismo dependente, com primazia da superexploração da força de trabalho, como elucidam Marini (2000) e Bambirra (2013).
A violência se apresenta como uma dimensão fundamental para a compreensão do capitalismo dependente no contexto brasileiro e contribui para a análise da relação entre acumulação capitalista e a manutenção do poder das classes dominantes. Marx (1984) já apontava em sua obra a violência como potência econômica presente no processo de acumulação capitalista, especialmente na fase de acumulação primitiva do capital. A partir da análise de Marini (2000), Bambirra (2023) e Castelo (2021) é possível identificar que a violência é também uma categoria central na compreensão do capitalismo dependente no contexto brasileiro, cuja origem remonta um contexto de domínio das elites agrárias, conservadoras, escravista e coronelistas (SALVADOR, 2002), quase um retrato do congresso nacional brasileiro.
Marini (2000) destaca a importância da exploração do trabalho excedente para a acumulação capitalista nos países dependentes, bem como a utilização de mecanismos de coerção e violência para garantir a manutenção dessa exploração. Bambirra (2013), destaca que a violência é utilizada como forma de reprimir as lutas e resistências da classe trabalhadora, garantindo a manutenção do poder das classes dominantes. Para Castelo (2021), a violência é uma potência econômica que permite ao capitalismo dependente obter vantagens econômicas e manter sua dominação. Essa violência se manifesta de diferentes formas, como a violência institucionalizada pelo Estado, a violência das classes dominantes sobre as classes subalternas e a violência simbólica presente na cultura e nas relações sociais, que vai transversalizar todas as fases do Brasil desde Colônia, do Brasil Independente, da Velha República, da República Nova, da Ditadura Civil-Militar, chegando ao Brasil atual(SALVADOR, 2002; CERQUEIRA FILHO, 1982).
Silva (2019, p. 28) explicita que a partir de 1988 ocorre uma reorganização do capitalismo no campo brasileiro que pactua latifundiários com a indústria transnacional, com a mídia, com Estado e com o capital financeiro. Essa composição ratificou as relações de poder no campo, nas quais cada partícipe cumpriu um papel para acumulação de mais capital. Nessa conjunção, “o latifundiário entrou com a terra; a agroindústria transnacional com a tecnologia (sementes transgênicas, fertilizantes químicos, agrotóxicos, equipamentos)”, a mídia hegemônica costurou esse enredo através de “propagandas antirreforma agrária e a favor do agronegócio” e, por fim, tudo isso ocorre com fomento do Estado, através de políticas públicas e de alteração da legislação para estar em conformidade com o projeto pretendido. O Agro não é POP, o Agro é morte!
A insistência da mídia hegemônica, que fez sua fortuna na ditadura militar, engana propositalmente a sociedade brasileira quando coloca na mesma propaganda o pequeno agricultor, a camponesa e o latifundiário, no intuito de desmobilizar a identidade camponesa e colocar em um mesmo contexto latifundiários e a agricultura camponesa familiar. Engana o povo quando utiliza a floresta e as monoculturas na mesma mídia para pintar de verde o que está manchado de sangue. O Agro não é top, o agro é veneno na mesa. O Agro é fome! Cabe ainda, inferirmos sobre os números divulgados pelo censo agropecuário que denuncia desde 2006 que o agro (latifúndio) possui cerca de 70% das terras agricultáveis, utilizam 70% dos recursos públicos para produção e produzem apenas 30% da comida que vai para a mesa do povo brasileiro¹ (BRASIL, 2009). O restante são commodities, mercadoria em sua forma bruta.
Na nossa democracia burguesa, o poder político se amalgama ao poder econômico, por isso, ser eleito democraticamente não garante a governabilidade. O Congresso Nacional brasileiro é a imagem que incorpora os interesses das classes dominantes, com ênfase nas bancadas da bíblia, do boi e da bala, que estruturam as desigualdades ao privilegiar com terra e recursos públicos uma minoria. O agronegócio brasileiro foi forjado na escravização do povo negro, no cercamento das terras e das águas, no genocídio dos povos originários, na destruição ambiental, na subserviência e subalternidade econômica, política, social e cultural aos países centrais, na grilagem de terras, no extrativismo predador e na produção de commodities em detrimento da produção de comida.
O sociometabolismo do capital faz gerar mais violências sobre a classe trabalhadora em um Estado que tem o controle das armas e vimos a cada golpe sobre a jovem democracia, ainda que burguesa, armas a serviço das milícias, da pistolagem e nas mãos do ‘cidadão de bem’. Superar um Estado burguês será necessário para que as velhas alianças com as burguesias sejam sepultadas.A violência que enfrentou Margarida Alves é estruturante da formação brasileira. Margarida Maria Alves foi a primeira mulher a presidir o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, por 12 anos, em plena ditadura militar brasileira, realizando diversas denúncias e judicializando ações trabalhistas.
O seu caso é representativo do contexto generalizado de ataques e assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos no Brasil, pois foi assassinada em sua residência, com vários disparos à queima roupa, na frente de toda a comunidade, vizinhos e familiares por um indivíduo que não fez questão de esconder seu rosto.
A violência que matou Margarida Alves e Roseli Nunes segue ceifando vidas, ameaçando sujeitos da história e criminalizando quem ouse alterar a ordem hegemônica dos privilégios no Brasil. Não é só a bala de uma arma que provoca a morte, a negligência do Estado mata tanto quanto e a conivência mata ainda mais.
Margarida Alves, Roseli Nunes e tantas outras e outros existiram, resistiram e suas existências são marcos históricos. Suas vidas e suas lutas deram origem e são inspirações para marchas, assentamentos, para lutadores e lutadoras do campo, das florestas e das águas. Todos os anos, nessa data, Margaridas partem de todos os cantos do Brasil e seguem em marcha até a capital do país para denunciarem o agro e as violências e ataques sofridos dentro de seus próprios territórios. Hoje, 07 de agosto de 2023, momento em que preparamos as reflexões alusivas ao dia 12 de agosto, chega a denúncia até a Campanha Contra a Violência no Campo de que três indígenas do povo Tembé foram baleados em Tomé-Açú, no nordeste do Pará, em plena cúpula dos povos amazônicos, que está ocorrendo no próprio estado. Os indígenas foram acusados de “invasores” e foram baleados pelos criminosos, que são seguranças privados da empresa BBF exploradora de dendezais na região.
Esta dinâmica compõe uma engrenagem que forja uma falsa ideia etapista de escalas de desenvolvimento, bem como a própria noção do que seja o desenvolvimento, fazendo com que encubram-se os verdadeiros fatores que geram as desigualdades, desde a origem de sua configuração, metamorfoseando as violências que, ao fim e ao cabo, se dão sobre a classe trabalhadora. Esse desenvolvimento que é consebido como moderno e tecnológico condena ao atraso tudo o que está relacionado ao conhecimento popular e às tecnologias desenvolvidas pelo campesinato ao longo de milênios de existência.
Não deve restar dúvidas quanto à importância da luta do povo organizado por uma reforma agrária popular, pois a terra conquistada se torna território ocupado que não se concretizaria sem a pressão e a mobilização do campesinato organizado coletivamente. Essas conquistas extrapolam fronteiras e regiões, e convergem em força para a totalidade da luta da classe trabalhadora, como aponta Araújo (2012):
[...] embora as condições atuais indiquem haver imensas barreiras às possibilidades de efetivação de uma reforma agrária real, tais possibilidades sempre estiveram, historicamente, e estão determinadas também a partir dos processos sociais e políticos oriundos das lutas e organização da classe trabalhadora e do apoio de diversas forças da sociedade. Há processos de lutas e de organização que extrapolam a fronteira nacional e regional, cuja visibilidade é obscurecida pelos meios de comunicação hegemônicos e outros processos político-ideológicos. (ARAUJO, 2012, p. 453).
Não é possível a produção de alimentos sem a terra, como já afirmamos. A terra é constitutiva do campesinato em toda a sua diversidade, mas também do capital nas economias dependentes. O campesinato sem a terra não produz alimentos e, ao longo dos anos, ocorre cada vez mais o negligenciamento da produção de alimentos para o povo brasileiro, o que ameaça a sua soberania alimentar, bem como avança de forma estarrecedora a violência contra os povos do campo, das águas e das florestas. A Campanha contra a violência no campo nasce de uma necessidade concreta de defesa da vida², da terra e dos territórios e já conta com 67 entidades, frentes e movimentos sociais populares somando forças. Lutar por justiça não é crime. A arma que mata quem resiste e luta também é empunhada pelo Estado quando esse negligencia as demandas e necessidades de seu povo. Nesse sentido, ratificamos a importância da Campanha Contra a Violência no Campo: em defesa dos povos das águas, do campo e das florestas.
A organização coletiva é uma ferramenta da classe trabalhadora organizada na luta contra os processos históricos de violência que geraram o empobrecimento no campo, o êxodo rural, a negligência das políticas públicas nos territórios onde vivem e trabalham, o subjugo da identidade e da cultura dos diversos povos que compõem o campesinato, contra a miséria nas cidades, o racismo que estrutura as violências contra o povo negro e que condena à morte crianças e jovens nas periferias, e a desigualdade de gênero que chancela a certeza da injustiça.
Neste 12 de agosto de 2023, ao percorrermos as trilhas das raízes históricas, que possamos nos tornar Margaridas na luta pela terra liberta e pela emancipação humana.
[1] As sínteses trazidas integram a pesquisa de tese da autora. Para mais detalhes pesquisar em: CHIMINI, Letícia. Produção e reprodução do capital nas economias dependentes e as implicações na questão agrária: o acirramento das desigualdades e os processos de resistência do campesinato brasileiro. 232 p. Tese (Doutorado em Serviço Social) — PUCRS, Porto Alegre, 2021.
Referências:
ARAUJO, Severina Garcia. Entrevista cedida à Maristela Dal Moro. Temporalis, Brasília, DF, ano 12, n. 24, p. 447-457, 2012. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/4077 Acesso em: 22 jul. 2021.
BAMBIRRA, Vânia. O Capitalismo Dependente Latino-Americano. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2013.
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Censo Agropecuário 2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009.
Castelo, R. (2021). A VIOLÊNCIA COMO POTÊNCIA ECONÔMICA NA GÊNESE DA “QUESTÃO SOCIAL” NO BRASIL. Temporalis, 21(42), 94–109. https://doi.org/10.22422/temporalis.2021v21n42p94-109
CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A “questão social” no Brasil: crítica do discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
IAMAMOTO, Marilda Villela. Serviço Social em Tempo de Capital Fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2015.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Tomo 2 – Coleção os economistas).
Letícia Chimini é assistente social, Mestra em Desenvolvimento Regional (UNISC), Doutora em Serviço Social (PUCRS), compõe a coordenação da Campanha Permanente Contra a Violência no Campo, Militante do MPA