18/08/2023
por Binô Zwetsch
Dia 19 de agosto é o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua, em memória ao acontecimento conhecido como “Chacina da Praça da Sé”, em 2004.
Não foi a primeira vez que essas pessoas sofreram violência, contudo, nada foi tão brutal como essa barbárie que ocorreu na cidade de São Paulo. Foram quinze pessoas em situação de rua golpeadas na cabeça, enquanto dormiam e sem possibilidade de defesa, levando a óbito sete delas.
Tal fato impulsionou a mobilização de grupos da população de rua em São Paulo e Belo Horizonte, no sentido de fundar o Movimento Nacional da População de Rua. Em 2005, participaram no 4º Festival Lixo e Cidadania, pessoas em situação de rua de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Cuiabá, a convite do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Foi neste encontro que houve o lançamento do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), como expressão dessa participação organizada em várias cidades brasileiras.
No mesmo ano, a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) recebeu alteração para a inclusão da obrigatoriedade da formulação de programas de amparo à população em situação de rua, por meio da Lei n 11.258/05, de 30 de dezembro de 2005. Em 2008, um representante do MNPR entrou para o Conselho Nacional de Assistência Social, sendo o primeiro representante eleito de movimento popular do segmento de usuários.
No ano seguinte, toda mobilização resultou na publicação do Decreto nº 7.053/2009 que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento.
Passo importante na caminhada de luta, a PNPR alcançou a definição da população em situação de rua como “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.
O desafio da conceituação está em disputa, pois é latente a diversidade de grupos e distintas localizações, no entanto o que unifica essas situações e permite designar os que a vivenciam como populações de rua é o fato de que, tendo condições de vida extremamente precárias, circunstancialmente ou permanentemente, utilizam a rua como abrigo ou moradia
Por essa definição, compilou-se pesquisas sociodemográficas e dados do Cadastro Único que calculou 281.472 pessoas em situação de rua no Brasil (Natalino, IPEA, 2023).
Conforme dados da pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2023), de 2012 a 2022, o crescimento desse segmento da população foi de 211%. Indicador de expansão muito superior à população brasileira, que foi de 11% entre 2011 e 2021, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
A desigualdade social no Brasil, estruturante da sociedade capitalista, perpassa as causas desse crescimento: desemprego, precarização do trabalho, rompimento de vínculos, problemas com álcool e outras drogas, fenômenos climáticos como deslizamentos, enchentes e ciclones.
Sem dúvida, desenvolver pesquisas estatísticas com o perfil e características são fundamentais para o planejamento de políticas públicas. Mesmo diante da relevância, esse segmento populacional não foi incluído no Censo demográfico do IBGE de 2022 com a justificativa da metodologia pesquisa pessoas domiciliadas.
Dando mais um passo, depois de termos conhecimento da categoria, convido a refletir e perceber a rua por um novo olhar, não como espaço público, em oposição ao espaço privado, lugar de passagem despersonalizado em meio a multidão, mas como lugar circunstancial, ponto da trajetória de vida de quem luta por direitos, atravessado por determinantes históricos e sociais.
Esse olhar mais nítido que não resume a cidadania à negação ou falta de algo de ordem individual, mas a tendência ao movimento, a coletividade e a solidariedade, ações intrínsecos à pessoa humana.
Na cidade é onde tudo acontece e uma vez que a rua compõe a paisagem urbana, não podemos reproduzir a invisibilidade das pessoas que lá habitam, que possuem nome e sobrenome, histórias de vida e relações sociais. Diferente da narrativa midiática da Cracolândia, que coloca a centralidade da droga como síntese da degradação da cidade. Todavia, tais territórios se configuram como epicentro do fenômeno da especulação imobiliária e da segregação socioespacial, ou seja, o lucro acima da vida. Nas palavras do Padre Júlio Lancellotti “a Cracolândia existe porque é um negócio lucrativo”.
E qual foi a resposta de governos ao uso de crack, álcool e outras drogas nos centros urbanos? A polícia. Erro repetido ano após ano que produziu mais violência e vulnerabilidade social. Enquanto que as experiências de programas de afirmação de políticas públicas de prevenção, cuidado, moradia e trabalho, embasadas no protagonismo das pessoas em situação de rua e organizações da sociedade civil, demonstraram a redução do impacto social do crack.
Nessa perspectiva, quem atende essa pessoa usuária de drogas, precisa considerar na sua prática profissional a ética do cuidado que não reproduz o ódio ou estigma e segue a diretriz da redução danos, assegurando a autonomia, que preconiza o cuidado em liberdade. Percurso preparatório para a garantia do acesso aos serviços de saúde, assistência social e ao conjunto das políticas sociais, independente dos valores morais do senso comum, de asseio, comportamento ou comiseração por piedade. Em síntese, direito não é favor e acolher não é punir.
Com este objetivo foi aprovada a Lei 14.489, 21 de dezembro de 2022, para enfrentar a aporofobia (aversão ao pobre) e a arquitetura hostil, a lei veda o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas construtivas hostis que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população de praças, viadutos, calçadas e jardins.
Ao invés de expulsar, o projeto ético-político do Serviço Social nos compromete a andar ao lado, parar e aproximar-nos do meio fio, de modo a compreender que habitar as ruas é uma condição de vida de pessoas que não nasceram na rua, não desejam permanecer na rua. Tal situação, no presente momento é a realidade vivida, forma de resistência à sociedade capitalista onde a casa é propriedade, privilégio de poucos, que precisa ser prioridade para política pública e para sociedade.
A trajetória de luta do movimento social alcançou o judiciário através da denúncia da omissão do Estado brasileiro presente na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 976.
Em decisão liminar do Ministro Alexandre de Moraes do Superior Tribunal Federal, concedeu prazo de 120 dias para que o governo federal elabore um plano de ação e monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população de rua, com medidas que respeitem as especificidades dos diferentes grupos familiares e evitem sua separação.
Na mesma decisão, foram garantidos direitos fundamentais, como proibir o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua e, o emprego de técnicas de arquitetura hostil contra essa população.
As conquistas só serão efetivadas a partir do compromisso coletivo com a vida acima do lucro, com direitos sociais universais e sem qualquer distinção, na direção que se reconheça que as vidas das pessoas em situação de rua são valiosas.
Referências:
BRASIL. Decreto 7.053, 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências.
ISMERIM, Flávio. “Cracolândia existe porque é um negócio lucrativo”, diz Padre Lancellotti à CNN. Reportagem de 21/07/2023. CNN Brasil. Disponível em
GREGORI, Maria Filomena. Meninos nas ruas: a experiência da viração. 1997. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
SILVA, Maria Lucia Lopes da. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005. Dissertação (Mestrado em Política Social). Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
NATALINO, Marco. Nota Técnica n.103. Estimativa da População em Situação de Rua. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. IPEA, 2023. Disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11604/4/NT_103_Disoc_Estimativa_da_Populacao.pdf
KASPER, Christian Pierre. Habitar a rua. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
Binô Zwetsch é antropólogo, estudante de Serviço Social (UFRGS) e membro do Comitê Técnico de Saúde da População em Situação de Rua do Rio Grande do Sul.
Foto: Imprensa CRESSRS