27/09/2024
por Mariane Echer*
A luz da feminista marxista, Beauvoir (1949), que alerta para uma questão: “basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Em tempos contraditórios, marcados por um profundo avanço neoliberal e conservador, acarretando na ampliação e naturalização da desigualdade social, e um aumento significativo nas violações dos direitos humanos.
É nesse estreito horizonte de profundas transformações, fruto do modo de produção capitalista, que se tornam cada vez mais intensas as ameaças de retrocesso aos direitos já conquistados, posto que movimentos conservadores revelam-se dedicados a restringir os direitos sexuais e reprodutivos de crianças, adolescentes, jovens, mulheres e pessoas que gestam.
Tal conjuntura, de violações de direitos, vivenciada por esses segmentos sociais, pode ser compreendida por meio de diversos dados de realidade. Segundo os dados da 10ª edição da Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, do Senado Federal, cerca de 25.458.500 de mulheres declararam, no ano de 2023, terem sofrido algum tipo de violência, sendo que 8.911.264 mulheres informaram terem sofrido violência pela primeira vez até os 19 anos de idade, ou seja, as violências aconteceram na infância, adolescência e na juventude.
Outro importante dado que busca mensurar a conjuntura de violações com esses segmentos e que soma nas reflexões sobre o acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva de adolescentes e jovens, é sobre o crescente número de registros de violência sexual na infância e adolescência. De acordo com o panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes de zero a 19 anos de idade, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre 2017 a 2020, foram registrados 179.277 crimes de estupro e estupro de vulnerável, representando uma média de quase 45 mil casos por ano.
Os números apresentados demonstram a realidade cruel que crianças, adolescentes e juventudes vivem em seu cotidiano e, muitas vezes, essa realidade é velada, até naturalizada. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o crime mais praticado no Brasil com crianças e adolescentes é o estupro e, entre os anos de 2019 e 2021, 56,6% das ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública foram de estupro: cerca de 100 crianças e adolescentes são violentadas por dia no Brasil.
A restrição do acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de crianças, adolescentes e jovens vai se refletir em uma série de privações e de violações ao longo de suas trajetórias de vida, sendo que a diferenciação no acesso a esses direitos para mulheres, homens, brancos, negros, jovens, adolescentes lgbtqiap+, consitui um modo perverso e sistemático de produção de subalternidade e exclusão social (Villela, 2002).
Uma importante pesquisa realizada pelo Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, o Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia) e o Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), que buscou investigar a incidência de gravidez e maternidade em adolescentes brasileiras, nos anos de 2008 a 2019, a partir da análise de bancos de dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan-Datasus), do Ministério da Saúde.
O estudo traz dados alarmantes sobre a desigualdade estrutural de raça e gênero entre as adolescentes e jovens gestantes no Brasil, destaca-se um importante indicador de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, o acompanhamento ao pré-natal, que, segundo os dados, é desigual aos grupos raciais sendo as meninas indígenas o grupo com menor acesso a 7 ou mais consultas – 20,8% e 26,6%, respectivamente, paras as faixas de 10 a 14 anos e 15 a 19.
No grupo de adolescentes e jovens negras, também nos dois grupos etários (10 a 14 anos e 15 a 19 anos), 40,4% e 47,4% das pardas e 41,9% e 50,2% das jovens pretas tiveram acesso a no mínimo 7 consultas. Sendo que, os maiores percentuais de acesso foram identificados entre adolescentes brancas: 56,6%; 64,3%. A pesquisa também destaca sobre as situações de abuso sexual com crianças e adolescentes com faixa de 10 a 14 anos e, portanto, a possibilidade de acesso ao aborto legal, conforme a legislação brasileira.
Sendo que, um total de 69.418 atendimentos em serviços de saúde decorrentes de violência sexual contra meninas e adolescentes foram registrados no país, segundo o SINAN, de 2015 a 2019. As meninas de 10 a 14 anos, foram as principais vítimas (66,92%) destes casos; as de 15 a 19 anos representaram 33,08% do total. Alerta-se que adolescentes e jovens negras foram as que mais sofreram violência sexual, com 64,18% do total de casos.
Neste sentido, esse cenário de violência explicitamente trata de um racismo que é estrutural, tais índices de violência, revelam sobre vidas marcadas por privações e violações dos direito humanos, observadas pelo não acesso aos direitos sexuais e reprodutivos, atingem de modo mais brutal, pessoas que já sofrem outras formas de opressão, como o racismo e a desigualdade social, que são mulheres pobres, pretas, adolescentes e jovens das periferias e favelas, sendo as que mais vivenciam a não efetivação da proteção integral e promoção da inviolabilidade dos corpos e da saúde sexual e reprodutiva.
O Dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva reúne dados sobre os direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos da população negra, especialmente de mulheres negras cisgênero e transgênero. Em todo o Brasil, foram 1.114 óbitos, sendo que o número de mortes entre negras é 77% superior ao de mulheres brancas. Neste sentido, regasta-se, em Carneiro (2003), que o racismo e a discriminação racial produzem entre mulheres, negras e brancas, contradições e desigualdades” (2003, p. 120).
Desta forma, o acesso à saúde não é proporcionado de forma igualitária. Madeiro e Diniz (2016) referem que a maioria das mulheres que chegam nos serviços de referência no aborto legal são brancas e com maior escolaridade, constatando que o direito à saúde não é proporcionado de forma igualitária, constituindo-se um modo cruel, extremamente perverso e sistemático de produção de subalternidade (VILLELA, 2002:86-87).
Enquanto uma estratégia que se une à luta contra o sistema de exploração e opressão, e que caminha junto no combate a essa, invisibilizando a diversidade de corpos, provocador de mudanças nas comunidades e na vida de sujeitos racializados, é a estratégia interseccional da Justiça Reprodutiva.(COLLINS; BILGE; 2020).
Compreende-se que o termo justiça é o reconhecimento das condições e possibilidades de gestar, no que se refere ao acesso aos serviços de saúde reprodutiva, educação, lazer, cultura, alimentação e moradia. Ao mesmo tempo, desvendar o cenário de opressão, exploração e dissociação que atingem tanto as mulheres negras quanto outras mulheres cujos direitos são restringidos. Ou seja, quando se trata de justiça reprodutiva, se trata do acesso às condições necessárias para uma vida digna humana.
Por esse motivo, estratégias de resistência e de defesa desses direitos devem se fazer permanentes e necessárias, pelo direito de decisão sobre seus próprios corpos e suas vidas, sendo imediato considerar que para a efetiva garantia desses direitos, é mais do que necessária, a luta e a defesa dos Direitos Humanos, mesmo tendo nitidez de seus limites emancipatórios e contraditórios, e justiça reprodutiva, ao mesmo tempo, articulado com as lutas, fundamentalmente anti-capitalistas, e no compromisso político de emancipação humana, por uma ordem social como forma de organização de sociedade, livre das relações de opressão e exploração.
Neste sentido, o Serviço Social tem o compromisso com base em seu projeto ético-político, de princípios e valores humanistas, de reconhecimento da liberdade, emancipação dos indivíduos sociais e de seus direitos e a defesa intransigente dos Direitos Humanos. Assim como, de fazer enfrentamentos a essa complexa conjuntura brasileira, pois é aquela capaz de contribuir, em diversos âmbitos, com as necessidades da população brasileira, com o desvendar dos desafios impostos à profissão, que atua na crítica da sociedade capitalista, bem como da profissão, sobretudo, no contexto brasileiro.
Por isso, é fundamental que a profissão esteja vinculada a correntes que, como expressamente defendido em seu código de ética, fortalecem o compromisso ético na defesa intransigente dos direitos humanos! Já que a defesa desses direitos diante desse cenário, em que só produz violações de direitos, é uma estratégia que lança um panorama de resistência à defesa de vida digna para crianças, adolescentes, jovens, mulheres e pessoas que gestam!
ABORTO LEGAL, SEGURO E GRATUITO JÁ!.
CRIANÇA NÃO É MÃE!
JUSTIÇA REPRODUTIVA
SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA SÃO DIREITOS HUMANOS.
*Mariane Echer é Assistente Social, Doutoranda em Educação (UFRGS); Mestra em Política Social e Serviço Social (UFRGS); Pesquisadora de Juventudes; Especialista em Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes (PUCRS); Especialista em Atenção Materno Infantil e Obstetrícia (GHC).
Descrição da imagem: 28 de setembro. Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto. Texto de Mariane Echer. Assistente Social, Doutoranda em Educação (UFRGS); Mestra em Política Social e Serviço Social (UFRGS); Pesquisadora de Juventudes; Especialista em Abordagens da Violência contra Crianças e Adolescentes (PUCRS); Especialista em Atenção Materno Infantil e Obstetrícia (GHC). Apresenta um lenço verde e a fotografia de Mariane, mulher, branca, sorrindo.